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quarta-feira, setembro 27, 2006

Texto - Roberto Shinyashiki

CUIDADO COM OS BURROS MOTIVADOS!!!

A revista Isto é publicou esta entrevista de Camilo Vannuchi.

O entrevistado é Roberto Shinyashiki, médico psiquiatra, com
Pós-Graduação em administração de empresas pela USP, consultor
organizacional e conferencista de renome nacional e internacional.

"Cuidado com os burros motivados"

Em "Heróis de Verdade", o escritor combate a supervalorização das
aparências diz que falta ao Brasil competência, e não auto-estima.


ISTOÉ -- Quem são os heróis de verdade?
Roberto Shinyashiki -- Nossa sociedade ensina que, para ser uma
pessoa de sucesso, você precisa ser diretor de uma multinacional, ter
carro importado, viaja r de primeira classe. O mundo define que poucas
pessoas deram certo. Isso é uma loucura. Para cada diretor de empresa,
há milhares de funcionários que não chegaram a ser gerentes.

E essas pessoas são tratadas como uma multidão de fracassados.
Quando olha para a própria vida, a maioria se convence de que não valeu
a pena porque não conseguiu ter o carro nem a casa maravilhosa. Para
mim, é importante que o filho da moça que trabalha na minha casa possa
se orgulhar da mãe. O mundo precisa de pessoas mais simples e
transparentes. Heróis de verdade são aqueles que trabalham para realizar
seus projetos de vida, e não para impressionar os outros. São pessoas
que sabem pedir desculpas e admitir que erraram.

ISTOÉ -- O sr. citaria exemplos?
Shinyashiki -- Quando eu nasci, minha mãe era empregada doméstica
e meu pai, órfão aos sete anos,empregado em uma farmácia. Morávamos em
um bairro miserável em São Vicente (SP) chamado Vila Margarida. Eles são
meus heróis.Conseguiram criar seus quatro filhos, que hoje estão bem.
Acho lindo quando o Cafu põe uma camisa em que está escrito "100% Jardim
Irene". É pena que a maior parte das pessoas esconda suas raízes. O
resultado é um mundo vítima da depressão, doença que acomete hoje 10% da
população americana. Em países como Japão, Suécia e Noruega, há mais
suicídio do que homicídio. Por que tanta gente se mata? Parte da culpa
está na depressão das aparências, que acomete a mulher que, embora não
ame mais o marido,mantém o casamento, ou o homem que passa décadas em um
emprego que não o faz se sentir realizado, mas o faz se sentir seguro.

ISTOÉ -- Qual o resultado disso?
Shinyashiki -- Paranóia e depressão cada vez mais precoces. O pai
quer preparar o filho para o futuro e mete o menino em aulas de inglês,
informática e mandarim. Aos nove ou dez anos a depressão aparece. A
única coisa que prepara uma criança para o futuro é ela poder ser
criança. Com a desculpa de prepará-los para o futuro, os malucos dos
pais estão roubando a infância dos filhos. Essas crianças serão adultos
inseguros e terão discursos hipócritas. Aliás, a hipocrisia já predomina
no mundo corporativo.

ISTOÉ - Por quê?
Shinyashiki -- O mundo corporativo virou um mundo de faz-de-conta,
a começar pelo processo de recrutamento. É contratado o sujeito com mais
marketing pessoal. As corporações valorizam mais a auto-estima do que a
competência. Sou presidente da Editora Gente e entrevistei uma moça que
respondia todas as minhas perguntas com uma ou duas palavras. Disse que
ela não parecia demonstrar interesse. Ela me respondeu estar muito
interessada, mas, como falava pouco, pediu que eu pesasse o desempenho
dela, e não a conversa. Até porque ela era candidata a um emprego na
contabilidade, e não de relações públicas. Contratei-a na hora. Num
processo clássico de seleção, ela não passaria da primeira etapa.

ISTOÉ -- Há um script estabelecido?
Shinyashiki -- Sim. Quer ver uma pergunta estúpida feita por um
Presidente de multinacional no programa O aprendiz? "Qual é seu
defeito?" Todos respondem que o defeito é não pensar na vida pessoal:
"Eu mergulho de cabeça na empresa. Preciso aprender a relaxar". É
exatamente o que o Chefe quer escutar. Por que você acha que nunca
alguém respondeu ser desorganizado ou esquecido? É contratado quem é
bom em conversar, em fingir. Da mesma forma, na maioria das vezes, são
promovidos aqueles que fazem o jogo do poder. O vice-presidente de uma
as maiores empresas do planeta me disse: "Sabe, Roberto, ninguém chega à
vice-presidência sem mentir". Isso significa que quem fala a verdade não
chega a diretor?

ISTOÉ -- Temos um modelo de gestão que premia pessoas mal
preparadas?
Shinyashiki -- Ele cria pessoas arrogantes, que não têm a
humildade de se preparar, que não têm capacidade de ler um livro até o
fim e não se preocupam com o conhecimento. Muitas equipes precisam de
motivação, mas o maior problema no Brasil é competência. Cuidado com os
burros motivados. Há muita gente motivada fazendo besteira. Não adianta
você assumir uma função para a qual não está preparado. Fui cirurgião e
me orgulho de nunca um paciente ter morrido na minha mão. Mas tenho a
humildade de reconhecer que isso nunca aconteceu graças a meus chefes,
que foram sábios em não me dar um caso para o qual eu não estava
preparado. Hoje, o garoto sai da faculdade achando que sabe fazer uma
neurocirurgia. O Brasil se tornou incompetente e não acordou para isso.

ISTOÉ -- Está sobrando auto-estima?
Shinyashiki -- Falta às pessoas a verdadeira auto-estima. Se eu
preciso que os outros digam que sou o melhor, minha auto-estima está
baixa. Antes, o ter conseguia substituir o ser. O cara mal-educado dava
uma gorjeta alta para conquistar o respeito do garçom. Hoje, como as
pessoas não conseguem nem ser nem ter, o objetivo de vida se tornou
parecer. As pessoas parecem que sabem, parece que fazem, parece que
acreditam. E poucos são humildes para confessar que não sabem. Há
muitas mulheres solitárias no Brasil que preferem dizer que é melhor
assim. Embora a auto-estima esteja baixa, fazem pose de que está tudo
bem.

ISTOÉ -- Por que nos deixamos levar por essa necessidade de sermos
perfeitos em tudo e de valorizar a aparência?
Shinyashiki -- Isso vem do vazio que sentimos. A gente continua
valorizando os heróis. Quem vai salvar o Brasil? O Lula. Quem vai salvar
o time? O técnico. Quem vai salvar meu casamento? O terapeuta. O
problema é que eles não vão salvar nada! Tive um professor de filosofia
que dizia: "Quando você quiser entender a essência do ser humano,
imagine a rainha Elizabeth com uma crise de diarréia durante um jantar
no Palácio de Buckingham". Pode parecer incrível, mas a rainha Elizabeth
também tem diarréia. Ela certamente já teve dor de dente, já chorou de
tristeza, já fez coisas que não deram certo. A gente tem de parar de
procurar super-heróis. Porque se o super-herói não segura a onda, todo
mundo o considera um fracassado.

ISTOÉ -- O conceito muda quando a expectativa não se comprova?
Shinyashiki - Exatamente. A gente não é super-herói nem
superfracassado. A gente acerta, erra, tem dias de alegria e dias de
tristeza. Não há nada de errado nisso. Hoje, as pessoas estão
questionando o Lula em parte porque acreditavam que ele fosse mudar suas
vidas e se decepcionaram. A crise será positiva se elas entenderem
que a responsabilidade pela própria vida é delas.

ISTOÉ -- Muitas pessoas acham que é fácil para o Roberto
Shinyashiki dizer essas coisas, já que ele é bem-sucedido. O senhor tem
defeitos?
Shinyashiki -- Tenho minhas angústias e inseguranças. Mas
aceitá-las faz minha vida fluir facilmente. Há várias coisas que eu
queria e não consegui. Jogar na Seleção Brasileira, tocar nos Beatles
(risos). Meu filho mais velho nasceu com uma doença cerebral e hoje tem
25 anos. Com uma criança especial, eu aprendi que ou eu a amo do jeito
que ela é ou vou massacrá-la o resto da vida para ser o filho que eu
gostaria que fosse. Quando olho para trás, vejo que 60% das coisas que
fiz deram certo. O resto foram apostas e erros. Dia desses apostei na
edição de um livro que não deu certo. Um amigão me perguntou: "Quem
decidiu publicar esse livro?" Eu respondi que tinha sido eu. O erro foi
meu. Não preciso mentir.

ISTOÉ - Como as pessoas podem se livrar dessa tirania da
aparência?
Shinyashiki -- O primeiro passo é pensar nas coisas que fazem as
pessoas cederem a essa tirania e tentar evitá-las. São três fraquezas. A
primeira é precisar de aplauso, a segunda é precisar se sentir amada e a
terceira é buscar segurança. Os Beatles foram recusados por gravadoras e
nem por isso desistiram. Hoje, o erro das escolas de música é definir o
estilo do aluno. Elas ensinam a tocar como o Steve Vai, o B. B. King ou
o Keith Richards. Os MBAs têm o mesmo problema: ensinam os alunos a
serem covers do Bill Gates. O que as escolas deveriam fazer é ajudar o
aluno a desenvolver suas próprias potencialidades.

ISTOÉ -- Muitas pessoas têm buscado sonhos que não são seus?
Shinyashiki -- A sociedade quer definir o que é certo. São quatro
Loucuras da sociedade. A primeira é instituir que todos têm de ter
sucesso, como se ele não tivesse significados individuais. A segunda
loucura é: Você tem de estar feliz todos os dias. A terceira é: Você tem
que comprar tudo o que puder. O resultado é esse consumismo absurdo. Por
fim, a quarta loucura: Você tem de fazer as coisas do jeito certo. Jeito
certo não existe. Não há um caminho único para se fazer as coisas. As
metas são interessantes para o sucesso, mas não para a felicidade.
Felicidade não é uma meta, mas um estado de espírito. Tem gente que diz
que não será feliz enquanto não casar, enquanto outros se dizem
infelizes justamente por causa do casamento. Você pode ser feliz tomando
sorvete, ficando em casa com a família ou com amigos verdadeiros,
levando os filhos para brincar ou indo a praia ou ao cinema. Quando era
recém-formado em São Paulo, trabalhei em um hospital de pacientes
terminais. Todos os dias morriam nove ou dez pacientes. Eu sempre
procurei conversar com eles na hora da morte. A maior parte pega o
médico pela camisa e diz: "Doutor, não me deixe morrer. Eu me
sacrifiquei a vida inteira, agora eu quero aproveitá-la e ser feliz". Eu
sentia uma dor enorme por não poder fazer nada. Ali eu aprendi que a
felicidade é feita de coisas pequenas. Ninguém na hora da morte diz se arrepender por não ter aplicado o dinheiro em imóveis ou ações, mas sim de ter esperado muito tempo ou perdido várias oportunidades para aproveitar a vida.

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