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quarta-feira, outubro 25, 2006

Carta ao Jornalista Joe Sharkey (passageiro do jato Legacy envolvido em acidente)

Prezado jornalista Joe Sharkey:

Tenho lido o que você fala e escreve desde que se envolveu no triste
desastre aéreo amplamente noticiado. Tenho lido e não tenho gostado.

Resumo dos fatos: o avião em que você viajava colidiu com um Boeing 737,
que caiu na selva, interrompendo a vida de 154 seres humanos produtivos e
inocentes - em sua maioria, gente de alta qualificação técnica e humana, o
que agrava a perda e a estende a toda a sociedade brasileira.

O seu avião, produzido no Brasil, resistiu ao impacto e aterrizou numa
base da Força Aérea Brasileira, na qual - até onde se sabe - você e os
demais sobreviventes foram acolhidos, assistidos, bem tratados e
respeitados.

Tiveram que depor perante a polícia e a aeronáutica, talvez mais de uma
vez. Nada mais natural. Não há notícias de que você tenha sido ofendido,
pressionado ou desrespeitado.

Sua primeira preocupação após ser liberado foi voltar aos Estados Unidos.
Você sabia que, em casa, poderia desempenhar o seu papel: contar aos
conterrâneos sua aventura na selva. Dar a sua versão dos fatos -
precipitada, supérflua e desprovida de fundamento técnico. Compartilhar o
cinismo simplista do cidadão ignaro, sugerindo que os pobres pilotos do
primeiro mundo estariam nas mãos sujas da polícia cucaracha.

Construiu uma imagem dos pilotos como se eles fossem presos políticos numa
republiqueta da América do Sul, sujeitos a prisões fétidas e dependentes de
um expresso da meia-noite que os salvasse da selvageria.

Gostaria de imaginar que você não está faturando com o episódio. Gostaria
de saber que você não está cobrando para dar entrevistas, não pôs a venda a
sua história e não pretende publicar um livro.

Como você mesmo disse, você está tendo seus quinze minutos de fama. Vende
uma história facilmente digerível ao americano comum, cheia de insinuações
de tortura, atos de bravura à lá Indiana Jones e suspense policial. Tratou
rapidamente de inocentar os pilotos e acusar a ineficiência dos radares
brasileiros.

Temos nossos graves defeitos, Joe. Nossas cadeias são fétidas, nossa
polícia é ineficiente e nossa distribuição de renda é inumana. Nossa
sociedade é quase tão injusta quanto a sua. Nosso presidente, quase tão ruim
quanto o seu. Mas entre nossos defeitos, não está o de maltratar os
estrangeiros.

Seria mais útil e honrado de sua parte contar um pouco das vidas que se
perderam na tragédia. Contar que, no vôo 1907, estavam cientistas e
voluntários brasileiros que defendiam a preservação da Amazônia. Gente que
lutava contra a prostituição infantil, professores, estudantes de medicina,
crianças. Contar sobre o antropólogo estrangeiro, casado com uma brasileira,
que trabalhava com comunidades indígenas. Poderia até contar a história do
cidadão norte-americano que viajava sobre a selva.

Poderia ter ficado aqui e narrado ao seu público o tratamento que a
empresa Gol está dando à tragédia, um exemplo de postura que eu nunca tinha
visto em situações semelhantes, aqui ou no "primeiro mundo".

Poderia ter descrito o trabalho sobre-humano dos valentes "marines"
brasileiros, que até hoje estão enfrentando corajosamente a violenta mata
amazônica na busca de sobreviventes e, na sua inexistência, na remoção dos
corpos, enfrentando um inferno que nunca será suficientemente descrito.

Poderia ter se contido no julgamento dos culpados. Nem você, Joe, sabe
quem são eles. E não estou condenando os pilotos. Não incorrerei no seu
erro. Pelo contrário: eles têm a minha solidariedade pois, ainda que tenham
tido a maior fatia de culpa, certamente não tiveram a intenção. Eles também
são vítimas desse desastre, como o cidadão honesto e trabalhador que,
distraído, cruza um sinal vermelho e causa a morte de inocentes.

Os fatos têm que ser apurados. Pilotos, fabricantes das aeronaves,
companhias aéreas, fabricante do transponder, controle de tráfego aéreo.
Temos que aprender com a tragédia e evitar que outras semelhantes ocorram.
Em respeito às vítimas do 1907.

Os culpados têm que ser punidos, independentemente de sua intenção. Deus
queira que não sejam os pilotos, porque nenhum cidadão da Terra merece
carregar esse peso para o resto da vida.

Quanto a você, Joe, perdeu uma grande oportunidade de ser útil à
humanidade. De fazer valer a vontade divina de salvar a sua vida. De
escrever seu nome na história do jornalismo. De ter um pouco mais do que
seus quinze minutos de fama.


Gustavo Lessa Neto
Advogado brasileiro

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